Memórias de Uma Olimpíada a Dois

Bom Jesus dos Pobres - Saubara-Ba.

17:26

Lá, no interior do recôncavo, às alturas da Rua Divineia, quando ainda não havia casas senão entre as moitas e o barro imaleável da encosta; meu amigo Fulano e eu decidimos por averiguar, comparativamente, nossas respectivas habilidades de arremesso. Sobre a testa do morro nos desafiamos um ao outro: haveríamos de descobrir quem poderia atirar uma pedra à mais infinita distância. Ele, canhoto; eu, condicionado ao braço direito.
-- Você primeiro. -- instigou-me.
 Seus olhos me desafiavam e eu não podia mais regredir. Palavra entre guris também é palavra -- ainda mais sabendo-se que ambos estávamos munidos de pedras --, a mensagem já se havia difundido entre nós, o jogo impunha-se no centro da mesa.
-- Beleza. Fique aí com medo!
Tomei ares de coragem e coloquei meus braços na retaguarda acima da cabeça a fim de ganhar impulso. Estiquei meu diafragma para inspirar minha força e lancei o pedaço de tijolo em formato de uma barra de chocolate que eu tinha em mãos.
O barulho foi incômodo, para mim, por assemelhar-se a golpes em placas finas de metal com uma marreta de pedreiro -- ainda que esse som não tenha se deslocado até nós com significativa intensidade; em outras palavras,  “o som não estava muito alto”, como se diz por aqui.
A pedra terminara por cair numa pequena casa,
cujo panorama só nos permitia ver o telhado em que o meu projétil foi parar. Fulano soltou sua singular risada de hiena e das alturas eu o incentivei:
-- Agora é a sua vez! Dúvido que consiga algo melhor que isso.
Meu nobre amigo, com efeito, lançou a sua pedra, que porventura rumou para o mesmo destino da que eu havia arremessado: um destino agudo e fugaz na superfície do telhado. Repetimos nossa particular olimpíada por uns cinco minutos a mais e retornamos à parte, ainda mais alta, onde morávamos.

17:41.

Nos chutes da nascitura noite já estávamos em nossas casas. O relógio denunciava a iminente hora do café. Antes, no entanto, eu deveria tomar o meu banho, trocar meus trapos barrentos do dia por uma roupa apresentável.
Mainha logo chegaria do trabalho, de sua labuta para todos nós, familiares e amigos, honrosa. Ela manteve a sábia decisão de não se curvar aos mexericos que brotavam na vizinhança. Pois se dizia que minha mãe acabava-se de trabalhar naquela praia. Ora! Parece não haver mesmo para onde fugir, não? Acaso não seria verdade que quando não trabalhamos somos chamados de preguiçosos e, despendendo nosso labor, pelo contrário, somos tidos como gananciosos? Mas, em verdade, o que seria de mim sem a energia elétrica, a água encanada, a minha cama, o café com leite que acompanhava o meu pão com manteiga pela manhã e à noite? Senão minha amorosa progenitora, quem me traria as roupas para as férias de São João, os meus DVD's comprados a valiosos cinco reais na feira de  Santo Amaro? De quanto cansaço ela não morria todos os dias em que, sobre a areia fervente da praia, deslocava-se para vender sua imperiosa moqueca de siri e o peixe frito, em filés, enfileirados num espeto de palha de coqueiro!

18:10

Da salinha de casa, prostrado sobre o sofá, de banho tomado, eu ouço então a inconfundível voz de mainha reduzir sua distância. Consegui distingui-la dos gritos do dono da casa cujo teto havia sido bombardeado.
-- Que agonia, a desse povo, meu Deus! -- Disse, impaciente, minha querida mãe.
Quão assustado não fiquei, ao perceber que o homem bradava à porta da casa de meu amigo Fulano para prestar queixa a sua mãe! E pior, magnetizou-me a pele; ergueram-se em mim os calafrios de ter em em mente que o próximo a implorar pra não ficar de castigo e não lidar com as consequências de meus atos haveria de ser eu.

Dias posteriores

Aprendi a lição: não devo atirar pedras ao telhado do Velho Tonho! Essa canção fúnebre ressoava de forma latente enquanto eu ruminava minhas oníricas ideias.
Fulano e eu, após termos sido educados sob alguns pequenos tabefes e privações -- tais como não poder mais sair para caçar com badogues ou brincar de futebol sobre os paralelepípedos da Rua da Fonte por uma infindável semana --, nos reunimos novamente para o veredicto:

-- Dessa vez deu empate. -- Disse ele.
-- Pena que não poderemos mais resolver isso da mesma forma. -- Respondi. -- Velho Tonho  empacou a brincadeira, não é não?
-- Não foi o quê! 

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