Ele, mortal

Ele sabia que ia morrer. Tinha ciência disso. Não da maneira como todas as outras pessoas costumam ruminar a ideia de morte, como fosse uma possibilidade longínqua; o fim de sua existência era carta marcada, um trunfo do tempo para igualar os amantes, os odiáveis, os perversos, os mestres, os aprendizes, os nômades de emoções, os fracos e os que se dizem fortes. Porque todos eles são vasos: vagabundos ou valiosos, despedaçam-se à ínfima queda, à mera raiva de quem o domina.

Ele se despe e encara as próprias olheiras todos os dias, seus traços delineados em um rosto comum se oferecem a um diálogo fervente com o espelho. Sua pele pálida e fria carrega pequenas manchas que lhe furtam quaisquer resquícios de esperança. Ele via na própria pele a personificação das máculas que davam combustível aos pensamentos mais fúnebres e temíveis que um jovem à flor das drogas pode erigir. Ele é mortal. O tempo todo soube disso.

A cada tragada no seu Malboro vermelho, uma rosa versada em espinhos lhe chega à mente. Prazer e morte beijam-se mutuamente a cada passagem das doses draconianas de nicotina, que transitam por sua garganta revestida por uma pele fina, esbranquiçada, com veias e artérias tão nuas que, de alguma maneira, sua própria circulação sanguínea se despe de segredos. Ele mente para os outros; para o seu espelho, entretanto, não há como fazê-lo sem submergir ao fluxo irregular de suas convicções. Convicções paradoxalmente diluídas.

Apesar disso, sua especialidade é a diversidade de válvulas de escape. Quase sempre elas o levam para um labirinto de amor, tensão, candura, raiva e, acima de tudo, à fuga da realidade árida e desidratada pelo devir e pelo dever de ser e estar a todo momento.

Seus dedos longos, um pouco tortos e refinados pela limpeza, montam acordes menores em seu violão negro e compacto. Sua cabeça desenha os sons que ele reproduz em suas cordas de nylon fino. As canções que toca se assemelham a atrizes dançando e atuando em nome de seus sentimentos confusos. É sempre uma dança confusa. Seria como dançar um bolero enquanto se ouve um Rock'n'Roll post punk. A cada nota que soa, mais uma etapa da metástase, mais uma célula anômala se reproduz, fazendo-o perceber que é apenas mais um mortal.

Ele se junta aos amigos para cumprir a tarefa diária da fuga. Numa situação como a sua, não há como deixar de amar paliativos, redutores de seus medos fungíveis.

O diagnóstico que recebera, contudo, não era de câncer. Tratava-se apenas de um problema: não se encaixava em nada. Não conseguia chegar a lugar nenhum, dado que não sabia o que queria de si e para si. E essa dor espalhava-se por seus órgãos; essa metástase revestia sua íris espessa. Ainda assim ele nunca mentiu para si mesmo. Sempre soube, à revelia do medo, que é um mortal, embora tivesse a certeza, além disso, de que a sua briga nunca foi contra a morte. Seu combate sempre foi contra sua perversa ansiedade e contra as desculpas que arrumava para se eximir do que temia.

Sua conversa com o espelho continua…
Ainda há muitas células a serem tomadas até que o momento certo chegue. Ele sabe que é mortal, mas sabe também que vale a vez tentar correr, desde que aprendeu a descansar em vez de  tentar acabar com tudo.



Autoria de Pedro H. C. Miranda

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